O Fórum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB) reúne 28 entidades de Psicologia voltadas ao conhecimento científico, exercício profissional, formação e trabalho, que se orientam pelos princípios dos Direitos Humanos, pela Constituição Brasileira, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código de Ética profissional da Psicologia. Temos, portanto, o dever de manifestar nossa posição, em perspectiva científica e eticamente orientada, posto que o debate em torno do tema tem sido marcado por posições equivocadas, enviesadas e embasadas em opiniões, preconceitos e crenças, que em nada contribuem para a tomada de decisões voltadas ao interesse público, em especial das mulheres e meninas de nosso país.
Nessa perspectiva, e considerando que o PL ataca frontalmente um direito constitucional – o aborto legal, entre eles os casos de estupro, não se pode falar de aborto desconectado de um de seus determinantes, o estupro. Desvincular esses dois fenômenos é colocar sobre os ombros das mulheres e meninas, já sobrecarregadas pelo sistema patriarcal, a responsabilidade sobre atos violentos e alheios à sua vontade, ou seja, culpar as vítimas pelos erros dos algozes.
Há que se considerar os alarmantes índices de violência sexual contra mulheres e meninas. Segundo o Relatório Socioeconômico das Mulheres realizado pelo Ministério das Mulheres, a cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Dos casos registrados, o Relatório sobre Estupros realizado pelo IPEA em 2023 aponta que aproximadamente 30% são praticados contra crianças de 0 a 10 anos e 45% contra adolescentes e jovens, o que representa um total aproximado de 75% dos casos. O Atlas da Violência publicado pelo IPEA em 2024 informa que 66% das violências não letais são praticadas no âmbito doméstico, contra meninas de 0 a 14 anos, e entre as violências sexuais contra crianças e adolescentes, 87% das vítimas são meninas. Portanto, estamos diante de um fenômeno que afeta diretamente meninas e jovens em fase de desenvolvimento.
De acordo com o Ministério da Saúde, a gravidez precoce resulta em maior dependência e vulnerabilidade para a mãe e para os filhos. Tais violências e riscos afetam, portanto, os direitos de crianças e adolescentes estabelecidos pelo ECA, como direito a proteção, segurança, pleno desenvolvimento. Para todas as mulheres, as violências sexuais, em particular o estupro, afetam seu constitucional direito à vida digna. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do FBSP/2022 apontam que cerca de 56,8% das vítimas de estupro são mulheres negras, 42,3% das vítimas brancas; 0,5% indígenas; e 0,4% amarelas. Tais dados trazem a realidade do PL que demonstram a face racista, sexista e misógina de parlamentares que legislam contra a cidadania. Nunca é demais lembrarmos que o direito ao aborto legal é uma conquista das mulheres!
Uma lei que criminaliza o aborto legal fere, portanto, direitos inalienáveis e protege os abusadores, já que lhes aplica pena inferior à proposta para as mulheres violentadas e terá como consequência reprimir as denúncias de violência sexual, uma vez que a espada da "justiça" volta-se contra a vítima, não contra o agressor. Ainda mais grave, ignora a condição de sofrimento psíquico consequente do estupro, bem como da própria necessidade do aborto. Desconsidera de forma cruel as dores de quem sofre as violências, bem como a ameaça ao desenvolvimento e saúde psicológica de meninas e mulheres ao obrigá-las a conviver com uma gravidez e maternidade decorrente da violência e, pior, muitas vezes conviver com o ator da ação criminosa.
O estupro é uma experiência extremamente traumática, que pode resultar em transtornos psicológicos graves, como, por exemplo, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão e ansiedade. A gravidez resultante de um estupro tem o potencial de agravar esses problemas, intensificando o sofrimento psicológico da vítima. Permitir que a mulher decida sobre continuar ou interromper a gravidez é crucial para a recuperação psicológica, pois restaura um senso de controle e autonomia que é essencial após uma experiência de violência sexual. Nesse sentido, defendemos que a mulher possua o direito de decidir sobre seu próprio corpo, incluindo a escolha de não levar adiante uma gravidez resultante de violência sexual. Esse direito é fundamental para a dignidade e a autonomia pessoal. Em casos de estupro envolvendo crianças e adolescentes, forçar a continuidade da gravidez representa uma violação dos direitos dessas vítimas, expondo-as a riscos físicos e psicológicos adicionais. Crianças e adolescentes que são obrigadas a levar uma gravidez a termo podem enfrentar interrupções significativas em seu desenvolvimento educacional, social e emocional, com consequências de longo prazo para suas vidas e oportunidades futuras. Permitir o aborto legal em casos de estupro visa reduzir o sofrimento contínuo da vítima, oferecendo uma solução que evita uma ligação perpétua com o trauma do estupro.
Permitir o aborto em casos de estupro é uma forma de minimizar o dano e promover o bem-estar da mulher. Além disso, garantir o acesso ao aborto legal para vítimas de estupro é uma questão de justiça, assegurando que essas mulheres tenham acesso a cuidados de saúde adequados e que seus direitos fundamentais sejam respeitados.
Por fim, deve-se compreender que violência sexual, estupro, não são expressões de amor, de desejo, são exercício de poder sobre o corpo das mulheres, são crimes. Impedir o legítimo direito ao aborto representa mais uma violência contra meninas e mulheres – é revitimizá-las, subjugá-las, silenciá-las.
Por todas as meninas, jovens, mulheres de nosso país,
Por uma profissão constituída por 80% de mulheres,
Por e para uma sociedade efetivamente democrática,
O FENPB manifesta seu mais veemente repúdio ao PL 1904/2024